Evento carioca aconteceu de 5 a 14 de março no Centre National de la Danse (CN D), contou com os espetáculos Quando Quebra Queima, Treta, Intervalo, O Samba do Crioulo Doido, Gente de Lá e Proyecto Tango, além de festa e mesa de debate
Um vasto e fértil território de resistência e reflexão crítica em movimento, assim foi mais uma edição do Festival Panorama, que este ano, se se instalou em Pantin, no Centre National de la Danse (CN D) – uma iniciativa do Ministério da Cultura e Comunicação Francês, criado em 1998 e que em uma única instituição centraliza um amplo espectro de atividades profissionais em benefício da dança. A programação desenhou três semanas com shows, performances, mesas redondas, reuniões e festas. Porém, com a pandemia que se instaurou na Europa, em meados do mês de março, foi preciso reagendar algumas apresentações e cancelar outras atividades. Sendo assim, tivemos seis espetáculos: Quando Quebra Queima, Treta, Intervalo, O Samba do Crioulo Doido, Gente de Lá e Proyecto Tango.
A programação do Panorama conduziu para a França corpos jovens, maduros, negros, brancos, héteros, gays, cis, trans, dialogando com as questões que atravessaram o festival nos últimos anos. “Estamos no centro de uma resistência desses corpos, que estão marginalizados no discurso do atual governo”, afirma Nayse Lopez diretora. A curadoria no CN D, em Pantin, levantou três grandes questões: o “futuro”, dando voz aos jovens para que eles exprimam sua raiva e angústia pelo que acontece no Brasil e no mundo; no segundo fim de semana, o eixo do passado, onde a ideia é verificar em que momento da história corpos como o negro ou o gay foram impedidos de ter protagonismo. Destaque para a Coletiva Ocupação, que levou uma cena nova durante o espetáculo Quando Quebra Quiema, que simula um levante popular, criada especialmente para o Festival Panorama 2020. “Trouxemos um grito de luta das ruas de Paris, que já existe há tempos, inclusive ficou forte no movimento dos coletes-amarelos, e também nas greves, que é “Tout le monde déteste la police (todo mundo odeia a polícia). Criamos uma música, grito-canto, produzida pelos Djs Shaolin e Akin, da Coletiva Ocupação, conta a diretora Martha Kiss Perrone.
O espetáculo transcendeu o espaço do CN D e ganhou as ruas de Pantin. “Participar do Panorama trouxe uma materialização de nossa luta. Sair do teatro e ir para rua funciona organicamente, pois já vamos deslocando o público, preparando para este momento do levante. O espetáculo teve sua dramaturgia criada coletivamente, a partir das vivências e memórias dos performers-estudantes, que escreveram cenas a partir dos registros de seus diários, músicas, coreografias e fotografias”, conta Lilith Cristina, de 20 anos, performance e atriz convidada pelo festival. O grupo enfatizou em cena a luta do movimento secundarista, que surge exigindo educação pública de qualidade em 2015 em São Paulo, e acaba se tornando uma luta mais abrangente, que tem foco na autonomia para jovens negros e periféricos LGBTQI+, e para que estes protagonistas possam ser responsáveis por seus próprios destinos e possam ter as subjetividades resguardadas e não determinadas pelo sistema.
Nesta edição, abordamos também do corpo latino-americano como um todo, representando este espectro aconteceu a peça de Federica Folco, Proyecto Tango, do Uruguai, um espetáculo que fala sobre a origem do tango enquanto lugar de luta nos portos do país, é uma luta que se transforma em dança, com uma carga política importantíssima para se pensar o que foi a construção do ideário da arte latino-americana. Assim como a peça de Wellington Gadelha, Gente de Lá, que é da periferia do Nordeste brasileiro. Ele que se coloca como um homem periférico negro num país colonial teve problemas em executar o espetáculo. Mesmo assim, com alguns percalços graves e equipamentos que não chegaram, o artista se apresentou bravamente, reafirmando a potência do trabalho urgente no cenário atual. “O clima pré pandemia estava bem forte por lá e afetou diretamente na presença do público e no compartilhamento do trabalho. Espero que aconteça outra oportunidade de compartilhar o espetáculo. E das poucas pessoas que chegaram a ver o trabalho, percebi que foi bem frágil a conexão. Meu trabalho tem olho no olho, presença, cheiro, suor, saliva. E devido todas as medidas de proximidade, algumas coisas não se concretizaram. Foi um desafio compartilhar dentro das circunstâncias dadas, mas rolou”, ressalta Wellington, que tenta até hoje reaver danos sofridos em seu material de trabalho durante translado feito pela UPS Tracking, empresa responsável pela carga. “Apesar do prejuízo com o material que ainda estou tentando reaver, foi muito importante ver de perto os modos de produção e execução do Festival Panorama acontecendo no CN D. Pude entender os pilares que envolvem a articulação de um festival nacional e internacional”, conta Gadelha.
Além dos espetáculos, aconteceu uma festa que contou com mais de mil pessoas, e foi comandada pelo Dj Omulu. Houve também uma emblemática mesa de debate com foco na juventude “Não confie em ninguém com mais de trinta anos”, mediada pela diretora do festival Nayse López. “Foram dias de incerteza que transformamos em combustível para mover estes corpos que se deslocaram para outro continente. O Festival Panorama persegue o compromisso de possibilitar uma plataforma de transmissão de produções artísticas frequentemente excluídas das redes institucionais. Fiel a esse posicionamento, a edição realizada em Pantin, reuniu jovens companhias em vias de profissionalização, algumas mais acostumadas à espaços informais do que às cenas oficiais”, ressalta Nayse.
No total, o festival somou um público de milhares de pessoas pagantes, e mais de 50 profissionais, contando artistas e equipe técnica. Com três semanas propostas e apenas duas de atividade, a curadoria assumiu um eixo temporal (futuro, passado, presente). De 5 a 14 de março, a programação abordou questões através dos prismas da educação e tecnologia, do pensamento decolonial, da censura e informação nas democracias de hoje. Essa reflexão política continuou durante a mesa-redonda e diversas reuniões, especialmente dedicadas às questões dos direitos das minorias (LGBTQI + ou povos indígenas). Os ingressos esgotaram no primeiro fim de semana, o público teria dobrado não fosse a realidade cruel de uma pandemia que se instaurou já na terceira semana de festival, impedindo a apresentação dos espetáculos Looping: Paris Overdub (Felipe de Assis, Leonardo França e Rita Aquino), e Domínio Público (Elisabete Finger, Maikon K, Renata Carvalho e Wagner Schwartz).
Em entrevista para o jornal O Globo, em março de 2020, o diretor Aymar Crosnier, responsável pela programação artística do CND, descreveu o sentimento dúbio de receber o Festival Panorama em Pantin, e comentou que o convite para este asilo artístico político foi feito na época da vitória de Jair Bolsonaro à Presidência. “O programa do governo em relação à sociedade civil e aos artistas foi, infelizmente, aplicado. O Panorama foi obrigado a cancelar, pela primeira vez desde 1992, o festival. É um convite tipo “terra de asilo” ao evento, que, espero, possa ocorrer novamente no Brasil. Foi, principalmente, um ato de solidariedade. Na minha carreira de programador, é um dos projetos mais políticos que já tive. É foi um privilégio receber o festival aqui. Um triste privilégio, infelizmente”, ressalta Crosnier.
O fato é que ao se tornar o anfitrião do Festival Panorama, além muros transcontinentais, o CN D consolidou laços com coreógrafos Brasileiros nos últimos anos, desde Lia Rodrigues, Wagner Schwartz, Calixto Neto e Marcelo Evelin, convidados das edições anteriores do Camping, até Volmir Cordeiro, artista associado entre 2017 e 2019. Mas ele também mostra sobretudo mostrou a intenção de criar o novo, de afirmar a solidariedade internacional e de trabalhar para a definição de arte como um ato completo de resistência. O futuro do festival Panorama, no entanto, ainda é incerto, como conta Nayse López. “Não temos certeza aqui no Brasil neste momento nem do que vai acontecer mês que vem”, ressalta. “Diante de um quadro de muita insegurança financeira, resolvemos em 2019 não anunciar uma edição que talvez não se realizasse por falta de recursos. Em paralelo a isso, como é um festival muito antigo, chegamos à conclusão que era hora de parar e repensar o formato”, diz. “Que tipo de projeto atende à necessidade dos artistas da performance contemporânea e do público nesse momento?”, ressalta a curadora. O Panorama foi bastante divulgado na França, com ampla cobertura feita por jornalistas correspondentes brasileiros e europeus. Alguns dos artistas participaram ao vivo de entrevistas nos estúdios da rádio, e também em canais de televisão. Duas palavras foram, e continuam sendo muito importantes para resumir a última edição do festival que aconteceu na França: Resistência e resiliência. Acreditar que o que a gente faz tem importância e ressonância e precisa ser feito. E também solidariedade, porque a decisão da Mathilde Monnier (ex-diretora do CN D), ao ser reiterada [pela nova direção francesa] foi um ato não só de solidariedade com uma comunidade artística que está de alguma forma em risco de sobrevivência pela ausência de políticas públicas, mas também pelo entendimento do CN D do seu papel. Não é um teatro pura e simplesmente, é um centro nacional de referência que olha para o que está acontecendo na dança, na França e no mundo”, afirma a diretora do Panorama.