Insistir, Outra Vez – Laboratório de Crítica no Festival Panorama 2016

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Sérgio Andrade*

 

O Laboratório de Crítica está fazendo cinco anos de realização junto ao Festival Panorama, que, por sua vez, em 2016, completou vinte e cinco anos de estrada. Ao longo do tempo, o desafio de coordenar essa iniciativa vem crescendo e se diversificando. Reunir pessoas para o exercício da “conversa infinita” sobre as obras, as curadorias e os espaços-tempos em que vivemos é uma tarefa árdua que às vezes beira o invisível. Esse ano, pela primeira vez ouvi de um dos participantes do LabCrítica que eu (como coordenador) “não produzia críticas” mas somente as agenciava. Descontraidamente, ele disse algo como: “acho que você deveria escrever também; deveria sair da posição confortável de agenciador e se expor também!” Nas suas palavras, o texto editorial (como esse que envio agora) não contava ou não deveria contar; talvez pelo editorial figurar um gesto paratextual, marginal, de suporte, de substituição, de antecipação que sofre da hierarquia entre coisa primeira e coisa segunda.

 

Os ecos dessa interpelação me fizeram lembrar Gayatri Chakravorty Spivak que, no histórico Preface de sua tradução de Of Gramatology (1974), obra de Jacques Derrida, diz que o prefaciador (seja ele mesmo ou outro nome próprio como <<autor>>) “não precisa pedir desculpas por ‘repetir’ o texto, pois há sempre já um prefácio entre as duas mãos que abrem um livro” (p. xiii). Não há livro, nem mesmo autoria, obra ou identidade que escape ao jogo da textualidade, da passagem de um leitor/ escritor a outro, de um rastro a outro. “Cada ato de leitura do ‘texto’ é um prefácio para o próximo. [E] a leitura de um prefácio autodeclarado não é uma exceção a essa regra”, diz Spivak (p. xii).

 

Bom, não estamos diante de um livro nem este é um prefácio autodeclarado, mas a situação de nenhuma pureza de início, de nenhuma origem simples me parece análoga. Talvez o episódio relatado acima não tenha tido o tom nem a intenção de intimação que pareço reportar agora, afinal conversávamos muito amigavelmente até com algum riso nos lábios. Mas é que fui pego de surpresa e assim levado a refletir sobre as razões de se realizar um “laboratório de crítica.”

 

Fazer o LabCrítica acontecer a cada ano é um ato político-pedagógico. Não tenho dúvidas. A iniciativa de atravessar as margens da universidade para dialogar e pensar o diálogo com os outros circuitos culturais da cidade é uma radical experiência de exposição à alteridade. O acolhimento dessa célula acadêmica-expatriada nesses outros circuitos também. Ambos gestos criam redes de colaboração, geram ambientes que não estavam previamente determinados e impulsionam o debate, a experiência dissensual e irruptiva. Os habituais “fora” e “dentro” (da universidade, do festival, das obras etc.), simultaneamente, se reformulam em espaçamentos muito mais complexos, e difícil mesmo é não estar imbricado. Difícil mesmo é ser somente um agenciador ou, ainda, é pensar a agência sem incorporação.

 

Nessa quinta edição, fizemos uma versão um pouco menor do LabCrítica, se comparada as dos anos anteriores. Basicamente, lançamos uma convocatória a poucos dias do início do Festival, fizemos um primeiro encontro com os selecionados para apresentar a equipe e a metodologia de trabalho e, logo em seguida, partimos para o acompanhamento da programação. Durante o Panorama, além dos encontros nas plateias dos espetáculos, ao longo de quatro semanas, o grupo se reuniu outras quatro vezes, durante três a quatro horas por dia, para a ponderação entre os autores, leituras, discussões de referências, exercícios de escrita e orientações diversas (como perguntas sobre a escolha de problemas, palavras e tons, retrabalho de referências, revisão etc.). E, desde o fim do Festival, seguimos com outras conversas pela internet para edição final dos textos.

 

A cada etapa, o que sempre nos interessou mais foi pensar como o exercício da crítica poderia acionar, convidar debates. Nesse sentido, continuamos entendendo esse espaço laboratorial da crítica enquanto uma experimentação de pensamento com obras, tal como discutido por Luiz Camilo Osório, em Razões da Crítica (2005), “uma escrita que começa a se perceber criativamente, menos com o caráter de representar um sentido da obra analisada (…) para se assumir de modo mais exploratório, participando do processo aberto de criação de sentido, sendo assim uma escrita <<com obras>>” (p. 16). Desse modo, a dosagem de humores entre descrição, citação e ajuizamento foi crucial para o resultado dos textos críticos que seguem. Prefiro chama-los assim, “textos críticos” ao invés de “críticas”, para talvez dizer mais sobre o jogo textual da crítica que arquiteta e inscreve os modos de sua produção.

 

Em 2016, o Festival Panorama teve uma programação enxuta, também em relação aos anos anteriores, com um recorte de treze espetáculos, uma instalação e uma exposição na curadoria principal, além dos encontros do LabUni, do LabCrítica e as ações dos projetos parceiros. A tensão dos espaços que insistem estava presente na programação do festival. A curadoria provocou debates sobre tempo, política e memória, reunindo artistas e amantes das artes do corpo que celebram os 25 anos do Panorama, outra vez, insistindo. Insistir, arriscaria em dizer, é um gesto tênue que atravessa a curadoria do festival e a prática que fizemos acontecer no LabCrítica. Fizemos outra vez; outra vez insistimos nesse projeto.

 

Os participantes do LabCrítica assistiram a quase toda programação, e o resultado que se vê aqui diz sobre a intimidade dos autores com as palavras, as experiências e os eventos. Escreveram sobretudo com as obras que os convidaram a escrever. Da coordenação, não houve nenhum direcionamento de qual obra cada um deveria se debruçar, o que me parece ser crucial para a potência do exercício da crítica. Finalizamos essa edição com doze autoras/es que produziram um total de quatorze textos. São elas/es: Ausonia Bernades, Beatriz Galhardo, Beatriz Veneu, Bruno Reis, Dally Schwarz, Fabrício Persa, Gabriel Lima, Larissa Brujin, Marjory Lopes, Silvia Chalub, Thaís Nascimento e Vera Terra. De formações bastante diversas, essas/es experimentaram escritas igualmente singulares. Algumas escolhas de obras se repetem, o que oportuniza uma leitura por várias perspectivas. Há autores/as que nunca haviam escrito sobre dança ou pensado sobre a especificidade da crítica antes do LabCrítica; há outras/os que já participaram de quase todas as edições do projeto. Há aquelas/es que preferem um tom mais conceitual, outras/os que tentam construir tessituras entre suas sensações e os limites das obras, por vezes extrapolando o espaço-tempo do evento cênico. Há textos que falam diretamente das estratégias dos artistas, há outros que tomam, estrategicamente, a experiência com a obra como uma válvula para escrita de outras dramaturgias. Houve até quem escolheu falar sobre a obra que assistiu do lado de fora do teatro e, na escrita, teve que fazer um esforço singular de reunir fragmentos, pensamento filosófico, discussões do LabCrítica e trechos encontrados na internet. Houve ainda quem experimentou fazer entrevistas para multiplicar as vozes e os olhares sobre uma obra. Em todos os casos, esses textos críticos precisam ser acolhidos como proposições em experimento que apelam à noção de crítica como uma teorização prática; um fazer que inscreve, articula e partilha debates com danças, performances e eventos.

 

A cada ano é de um jeito e só assim tem sido possível. Obrigado a todas e todos participantes, e um viva àquelas/es que nos acompanharam até aqui.

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O Laboratório de Crítica é um projeto de pesquisa e extensão associado aos cursos de Dança da UFRJ, em especial ao Bacharelado em Teoria da Dança. Desde sua criação em 2012, essa iniciativa contou com o apoio do Festival Panorama, especialmente com o acolhimento de Nayse Lopez, diretora do festival, e sua equipe, a quem registro calorosos agradecimentos pela parceria. Destaco ainda o acompanhamento cuidadoso de Marta Vieira, Produtora de Atividades Paralelas do Festival. Também, agradeço a Silvia Chalub, participante do LabCrítica desde 2013, e que em 2016 assumiu a Assistência de Coordenação do projeto. Foi Silvia que me arrastou para o trabalho dessa última edição, insistiu na importância desse espaço sempre de forma muito alegre e vigorosa. Nesta edição, além de autora de um dos textos, Silvia organizou as expedições aos teatros e trabalhou junto comigo na edição final dos textos. É uma felicidade grande ver o LabCrítica gestar amizades e re-embaralhar laços de colaboração. Para o próximo ano, estamos planejando outros desdobramentos do projeto e sem Silvia nada ganharia força ou eu pelo menos não teria coragem. Muito obrigado, minha cara.

 

Boa leitura a todas e todos.

 

* Sérgio Andrade criou o Laboratório de Crítica em 2012 e o coordena desde então. Artista e pesquisador em dança, filosofia e performance, é Professor Adjunto do Departamento de Arte Corporal da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Na instituição, coordena também o Programa de Estágios e Atividades Formativas de Intercâmbios em Dança. É Doutor e Mestre em Filosofia pela PUC-Rio, Mestre em Artes Cênicas e Licenciado em Dança pela UFBA. Contatos: sergioandrade@ufrj.br; e labcritica.contato@gmail.com.

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