O artista Luiz de Abreu cria imagens que dão uma resposta muito direta sobre a objetificação do corpo negro ao longo dos anos
Quando começou a pensar o espetáculo em 2003, Luiz de Abreu focou no próprio corpo para dar voz ao que muito havia para ser dito no meio da dança. Dentro do peito, aquela voz que ressoava já era uma inquietação do artista, que na época ganhou um edital do Itaú Rumos e pôde se debruçar mais ainda sobre a sua própria linguagem na dança, que no Brasil ainda tinha nome de dança moderna. Foi assim que nasceu o Samba do Crioulo Doido, com referências a partir de elementos associados ao negro brasileiro – samba, carnaval e erotismo –, e de referências à derrotada Pátria branca. O artista cria brilhantemente imagens que falam de racismo e transgressão como forma de resistência e da importância do corpo na construção da identidade. “O espetáculo existe há 16 anos, não se atualizou, na verdade os contextos é que se atualizam, a proposta é a mesma e muito atual. Participar do Panorama Pantin na França, neste momento, nos trouxe um sentimento de que não estamos sozinhos, temos já um corpo denso formado no mundo, temos asilo e acolhimento”, ressalta o artista.
Em parceria com o Centre National de la Danse, o Samba do Crioulo Doido foi remontado para uma turnê na europa. Em dezembro de 2019, Calixto Neto, arista brasileiro radicado em Paris, trabalhou em parceria com Luiz de Abreu durante algumas semanas em Salvador (BA). No final de janeiro de 2020, Luiz de Abreu e Calixto Neto trabalharam juntos no Centre National de la Danse, na França, dias antes da estreia do espetáculo na cidade de Reims, no dia 02 de fevereiro. A peça que traz delicadamente a nudez como figurino e a bandeira brasileira como pano de fundo, também foi apresentada em Orléans no dia 04 de março, e nos 12 e 13 de março, no Centre national de la danse – CN D. Luiz de Abreu contou que estava bastante à vontade, e que o público europeu, como sempre, recebeu muito bem a performance que agora era realizada por Calixto Neto. “A primeira vez que fui apresentar na Alemanha em 2005, não queriam traduzir a palavra “criolo” para a língua alemã, queriam usar outra palavra, foi uma briga para manter o nome. Na época eu argumentei que se tirássemos o título, tiraríamos a hipótese. É o samba do crioulo doido, não poderia ser politicamente correto. E a partir disso, vou descontruir e lançar as problemáticas. Até hoje sou chamado de crioulo quando querem me rebaixar, o espetáculo é uma resposta muito direta sobre objetificação, conta Luiz.
Pela força da performance, e valendo-se da ironia e do deboche, quer devolver ao corpo-objeto o sujeito roubado, com sentimentos, crenças e singularidades. O artista movimenta-se de maneira a confundir o imaginário do público, num misto de contorção de músculos, movimentos específicos da omoplata, das nádegas e do pênis, e também samba, muito samba, até finalizar com a Ave Maria ao som de um cavaquinho. “Por conta do Samba do Crioulo Doido já vivi coisas muito interessantes e coisas muito pesadas, uma vez no Piauí, tive que sair escoltado e escondido num carro de reportagem, os militares queriam me prender durante a apresentação do espetáculo, o governador precisou intervir por mim, foi um pânico, sofri ameaça de morte. Estamos sempre por um fio quando a proposta é questionar o racismo”, conta Luiz.
Durante a estadia em Paris, Luiz participou de uma entrevista na rádio RFI (https://www.rfi.fr/br/cultura/20200310-rfi-convida-luiz-de-abreu), onde falou sobre processo criativo, ironia e desconstrução de estereótipos. “A peça fala por si mesma. Uso umas botas de mulata, uso a bandeira do Brasil, uso uma boca que cria um lábio muito grande. O meu trabalho foi escutar esses materiais. A bandeira do Brasil, não é um cenário simples, ela é o pano de fundo, símbolo de onde se passa essa história. E o corpo negro está inserido nessa história. Pego essa bandeira do Brasil e a introduzo no ânus. Eu a introduzo em mim”, diz Abreu.
Esses elementos começam a falar por si e a reivindicarem o seu lugar, materializado ali na peça”, afirma o coreógrafo. O espetáculo “Samba do Crioulo Doido” também foi um dos destaques esse ano da mostra FARaway, em Reims na França. Veja no link https://www.rfi.fr/br/cultura/20200130-mostra-faraway-na-fran%C3%A7a-joga-holofote-sobre-artistas-brasileiros-entre-est%C3%A9tica-%C3%A9t